
Quebramos a garrafa de champanhe para saudar a primeira viagem da Oficina em 2016 com o poema Gênio do Mal, de Charles Baudelaire. A escolha foi fácil diante da paráfrase com o poeta, denominado de Gênio do Mal, devido seu lado transgressor e atração pelo espírito das trevas, gênio ou representação do mal. O desejo de ler o poema no original tornou-se uma árdua e quase impossível tarefa, conforme está postado no blog da Oficina (www.traco-freudiano.org/blog). A viageira Adelaide incansável na sua busca releu centenas de poesias de Charles Baudelaires até achá-la sob o numero XXV de Flores do Mal. Tanta labuta fez-me mergulhar mais na obra desse autor, descobrindo, além das poesias ensaios literários da maior importância. O tom do ensaísta difere um pouco do tom do poeta, sendo o primeiro mais formal, menos parecido com um anjo do mal. Anjo ou demônio Charles Baudelaire será nosso companheiro na Oficina por mais algum tempo, leitores seus e conhecedores do monstro delicado segundo suas palavras: Tu conheces, leitor, o monstro delicado/-– Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!
AO LEITOR
Charles Baudelaire
A tolice, o pecado, o logro, a mesquinhez
Habitam nosso espírito e o corpo viciam,
E adoráveis remorsos sempre nos saciam,
Como o mendigo exibe a sua sordidez.
Fiéis ao pecado, a contrição nos amordaça;
Impomos alto preço à infâmia confessada,
E alegres retornamos à lodosa estrada,
Na ilusão de que o pranto as nódoas nos desfaça.
Na almofada do mal é Satã Trimegisto
Quem docemente nosso espírito consola,
E o metal puro da vontade então se evola
Por obra deste sábio que age sem ser visto.
É o Diabo que nos move e até nos manuseia!
Em tudo o que repugna uma jóia encontramos;
Dia após dia, para o Inferno caminhamos,
Sem medo algum, dentro da treva que nauseia.
Assim como um voraz devasso beija e suga
O seio murcho que lhe oferta uma vadia,
Furtamos ao acaso uma carícia esguia
Para espremê-la qual laranja que se enruga.
Espesso, a fervilhar, qual um milhão de helmintos,
Em nosso crânio um povo de demônios cresce,
E, ao respirarmos, aos pulmões a morte desce,
Rio invisível, com lamentos indistintos.
Se o veneno, a paixão, o estupro, a punhalada
Não bordaram ainda com desenhos finos
A trama vã de nossos míseros destinos,
É que nossa alma arriscou pouco ou quase nada.
Em meio às hienas, às serpentes, aos chacais,
Aos símios, escorpiões, abutres e panteras,
Aos monstros ululantes e às viscosas feras,
No lodaçal de nossos vícios imortais,
Um há mais feios, mais iníquo, mais imundo!
Sem grandes gestos ou sequer lançar um grito,
Da Terra, por prazer, faria um só detrito
E num bocejo imenso engoliria o mundo;
É o Tédio! – O olhar esquivo à mínima emoção,
Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado.
Tu conheces, leitor, o monstro delicado
– Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!
Benção é um poema de Charles Baudelaire que lembra a vida conturbada do poeta com a sua mãe.Ele é de uma dureza que parece a dor de um soco no estômago. Órfão de pai aos seis anos, Baudelaire passou a vida inteira em atrito com o padrasto que só cessou com a morte do intruso na sua relação com a mãe. O poema revela o patinho feio que ele introjetou, alvo da extrema rejeição materna “Ah! Tivesse eu gerado um ninho de serpentes,/Em vez de amamentar esse aleijão sem graça!/Maldita a noite dos prazeres mais ardentes/Em que meu ventre concebeu minha desgraça! Após a morte do padrasto eles passam a morar juntos, não por muito tempo, porque Charles Baudelaire faleceu aos quarenta e seis anos de idade, nos braços da mãe.
BÊNÇÃO
Charles Baudelaire
Quando, por uma lei das supremas potências,
O Poeta se apresenta à platéia entediada,
Sua mãe, estarrecida e prenhe de insolências,
Pragueja contra Deus, que dela então se apiada:
“Ah! Tivesse eu gerado um ninho de serpentes,
Em vez de amamentar esse aleijão sem graça!
Maldita a noite dos prazeres mais ardentes
Em que meu ventre concebeu minha desgraça!
Pois que entre todas neste mundo fui eleita
Para ser o desgosto de meu triste esposo,
E ao fogo arremessar não posso, qual se deita
Uma carta de amor, esse monstro asqueroso,
Eu farei recair teu ódio que me afronta
Sobre o instrumento vil de tuas maldições,
E este mau ramo hei de torcer de ponta a ponta,
Para que aí não vingue um só de teus botões!”
Ela rumina assim todo o ódio que a envenena,
E, por nada entender dos desígnios eternos,
Ela própria prepara ao fundo da Geena
A pira consagrada aos delitos maternos.
Sob a auréola, porém, de um anjo vigilante,
Inebria-se ao sol o infante deserdado,
E em tudo o que ele come ou bebe a cada instante
Há um gosto de ambrósia e néctar encarnado.
Às nuvens ele fala, aos ventos desafia
E a via-sacra entre canções percorre em festa;
O Espírito que o segue em sua romaria
Chora ao vê-lo feliz como ave da floresta.
Os que ele quer amar o observam com receio,
Ou então, por desprezo à sua estranha paz,
Buscam quem saiba acometê-lo em pleno seio,
E empenham-se em sangrar a fera que ele traz.
Ao pão e ao vinho que lhe servem de repasto
Eis que misturam cinza e pútridos bagaços;
Hipócritas, dizem-lhe o tato ser nefasto,
E se arrependem pó haver cruzado os passos.
Sua mulher nas praças perambula aos gritos:
“Pois se tão bela sou que ele deseja amar-me,
farei tal qual os ídolos dos velhos ritos,
e assim, como eles, quero inteira redourar-me;
E aqui, de joelhos, me embebedarei de incenso,
De nardo e mirra, de iguarias e licores,
Para saber se desse amante tão intenso
Posso usurpar sorrindo os cândidos louvores.
E ao fatigar-me dessas ímpias fantasias,
Sobre ele pousarei a tíbia e férrea mão;
E minhas unhas, como as garras das Harpias,
Hão de abrir um caminho até seu coração.
Como ave tenra que estremece e que palpita,
Ao seio hei de arrancar-lhe o rubro coração,
E, dando rédea à minha besta favorita,
Por terra o deitarei sem dó nem compaixão!”
Ao céu, de onde ele vê de um trono a incandescência,
O Poeta ergue sereno as suas mãos piedosas,
E o fulgurante brilho de sua vidência
Ofusca-lhe o perfil das multidões furiosas:
“Bendito vós, Senhor, que dais o sofrimento,
esse óleo puro que nos purga as imundícias
como o melhor, o mais divino sacramento
e que prepara os fortes às santas delícias!
Eu sei que reservais um lugar para o Poeta
Nas radiantes fileiras das santas Legiões,
E que o convidareis à comunhão secreta
Dos Tronos, das Virtudes, das Dominações.
Bem sei que a dor é nossa dádiva suprema,
Aos pés da qual o inferno e a terra estão dispersos,
E que, para talhar-me um místico diadema,
Forçoso é lhes impor os tempos e universos.
Mas nem as jóias que em Palmira reluziam,
As pérolas do mar, o mais raro diamante,
Engastados por vós, ofuscar poderiam
Este belo diadema etéreo e cintilante;
Pois que ela apenas será feita de luz pura,
Arrancada à matriz dos raios primitivos,
De que os olhos mortais, radiantes de ventura,
Nada mais são que espelhos turvos e cativos!”.